Por se alimentar de esperança, Lula conseguiu falar como estadista. Por se alimentar do medo, Bolsonaro não consegue deixar de falar como candidato, mesmo após ser eleito e empossado
Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Al Margen
Hoje, no Brasil, o sistema político está polarizado por duas lideranças carismáticas capazes de despertar na sociedade afetos tão opostos como o amor e o ódio. É claro que estou falando de Lula e Bolsonaro, do lulismo e do bolsonarismo. Nesses 30 anos de “Nova República”, com a exceção desses dois, nenhuma outra liderança política brasileira teve um “ismo” para chamar de seu.
Qualquer esforço de compreensão da história politica brasileira contemporânea passa pela comparação entre Lula e Bolsonaro. É isso que faço aqui. Começo pelas circunstâncias eleitorais que pavimentaram as vitórias eleitorais dos dois personagens.
A vitória eleitoral de Lula era um projeto da sociedade civil organizada que datava do final da década de 1970. Ao ser eleito em 2002, Lula era velho conhecido de todos os brasileiros. As eleições de 2002 aconteceram na perfeita normalidade democrática. Lula enfrentou José Serra, o ungido de Fernando Henrique Cardoso, que na época terminavam seu segundo mandato. A população brasileira teve todas as condições de comparar os dois projetos em disputa. PSDB X PT. Lula foi a todos os debates.
Bolsonaro foi eleito em um processo eleitoral confuso e marcado pela interferência direta do poder Judiciário na corrida presidencial. Todos sabemos que Lula foi impedido de concorrer, foi impossibilitado até de participar da campanha por Sérgio Moro, que hoje é ministro de Estado nomeado por Jair Bolsonaro.
As eleições de 2018 aconteceram sem debates. Protegido por um atentado que até hoje não foi devidamente explicado, Jair Bolsonaro não foi aos debates, não falou sobre seu plano de governo.
Nos discursos de posse, tanto Lula como Bolsonaro se apresentaram como o resultado de um desejo coletivo de mudança. Os dois falaram da necessidade de reformas estruturais no Estado brasileiro.
Dezesseis anos separam 2003 de 2019. Muita coisa mudou. Existem também algumas semelhanças. Eram momentos de transição, de virada na página da história. Com Lula, o Brasil mudou do ensaio neoliberal para a social democracia. Com Bolsonaro, o Brasil está transitando da social democracia para algo que ainda não tem nome, mas que é assustador.
“Hoje, começamos um trabalho árduo para que o Brasil inicie um novo capítulo de sua história”, disse Bolsonaro.
“Hoje, estamos realizando um sonho que não é só meu, mas um sonho do povo deste país, que queria mudança”, disse Lula.
Os dois presidentes eram alvo de grande desconfiança no momento da posse. A diferença fundamental está na forma como essa desconfiança foi enfrentada.
Em Junho de 2002, ainda durante a campanha, Lula publicou a sua “Carta ao Povo Brasileiro”. Naquela altura, a vitória eleitoral de Lula era favas contadas e o candidato entendeu rapidamente que precisava começar a se comportar como um estadista, como presidente de uma das maiores democracias do mundo.
Lula entendeu rápido que o cargo exigia concessões, e que ele precisava deixar de ser o metalúrgico, líder sindicalista, para se tornar o Presidente da nação. Lula desceu do palanque antes de subir a rampa do Palácio do Planalto.
No documento, Lula falava em respeito à propriedade, aos contratos estabelecidos. A conciliação teve como preço o desgaste com suas bases históricas. Lula foi chamado de traidor por companheiros de longa data. O tom do discurso de posse seguiu a tendência da “Carta ao Povo Brasileiro”. Lula não mencionou seus adversários políticos, não falou em conflito. Somente um inimigo foi nomeado: a fome. No seu discurso de posse, Lula declarou guerra contra a fome.
“E quero propor isso a vocês: amanhã, estaremos começando a primeira campanha contra a fome neste país. É o primeiro dia de combate à fome. E tenho fé em Deus que a gente vai garantir que todo brasileiro e brasileira possa, todo santo dia, tomar café, almoçar e jantar, porque isso não está escrito no meu programa. Isso está escrito na Constituição brasileira, está escrito na Bíblia e está escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos. E isso nós vamos fazer juntos.”
O comportamento de Jair Bolsonaro foi completamente diferente. No auge da campanha eleitoral, quando sua vitória era dada como certa por todos os institutos de pesquisa, Bolsonaro falou em videoconferência aos seus eleitores, que estavam reunidos na Avenida Paulista, em São Paulo.
Bolsonaro não sinalizou para a conciliação. Pelo contrário, sob os aplausos e gritos de seus apoiadores, ele prometeu servir a cabeça dos adversários em uma bandeja de prata.
O discurso de posse seguiu a mesma tendência.
“A construção de uma nação mais justa e desenvolvida requer a ruptura com práticas que se mostraram nefastas para todos nós, maculando a classe política e atrasando o progresso. A irresponsabilidade nos conduziu à maior crise ética, moral e econômica de nossa história.”
Quilombolas, feministas, comunidade LGBT, professores, petistas, imigrantes. Segundo o presidente da República, são esses os responsáveis pelo atraso, são esses os inimigos da nação.
Bolsonaro não conseguiu apresentar agendas propositivas. Todo o discurso é atravessado pela destruição, pela construção de um inimigo que precisa ser combatido, derrotado, aniquilado.
É certo que entre Lula e Bolsonaro há semelhanças também. Ambos se tornaram objetos de um tipo de culto cívico que diz muito sobre a cultura política brasileira. Somos um país de tradição republicana frágil, de mentalidade cristã arraigada, o que nos torna sensíveis a toda sorte de messianismos. Entre nós, a representação política mais genuína acontece através da projeção de afetos, de idolatria aos líderes carismáticos. Parte da sociedade brasileira se sente representada por Lula. A outra parte se sente representada por Bolsonaro. Uma lástima não termos tido a possibilidade de ver um embate franco e direto entre os dois.
Entretanto, seria um equívoco acreditar que o lulismo e o bolsonarismo são iguais. Não são. As energias afetivas que os impulsiona são bastante diferentes.
O lulismo foi alimentado por anos de militância e pela combinação entre experiência e esperança. Lula representava o nordestino, o pobre, o trabalhador sem curso superior que pela primeira vez comandava a República fundada pelos bacharéis. Lula, com todas as contradições que marcaram seu governo, teve sucesso no combate à fome e à miséria. Lula venceu a sua guerra.
O sertanejo que idolatra Lula tem a experiência como fundamento do seu afeto. Com Lula, a água chegou na torneira, a energia elétrica na tomada, o pão na mesa.
O bolsonarismo está sendo alimentado pela sensação do apocalipse político. Até pouco tempo, Bolsonaro era um deputado inexpressivo e desconhecido no cenário nacional. Sua liderança é impulsionada pelo medo, pela desilusão.
Porque se alimentava de esperança, Lula conseguiu falar como estadista quando ainda era candidato. Porque se alimenta do medo, Bolsonaro não consegue deixar de falar como candidato, mesmo depois de eleito e empossado.
Em 2003, teve início uma era de prosperidade geral, de conciliação nacional. Nenhum grupo social perdeu com o governo Lula. É certo que uns ganharam mais que outros, como acontece em toda sociedade capitalista. Nunca é demais lembrar que Lula jamais arranhou as estruturas do capitalismo periférico brasileiro. Do socialismo, o presidente Lula não chegou nem perto.
O ano 2019 começa sob os efeitos de uma grave crise política e econômica que está longe de terminar. Bolsonaro não pode abandonar o virulência característica do palanque eleitoral, não pode tentar se reconciliar com aqueles que não votaram nele. Isso seria o seu fim, seu desaparecimento político. Bolsonaro não existe sem seus inimigos, sejam eles reais ou inventados.
Bolsonaro será sempre o presidente do conflito, do ódio.
A necessária comparação entre Lula e Bolsonaro se dá muito mais pelas diferenças do que pelas semelhanças.
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