O governo Bolsonaro investe agressivamente no divisionismo entre os povos indígenas como estratégia para favorecer grandes interesses econômicos, alerta o Cimi
Informações divulgadas pela imprensa, áudios de garimpeiros que circulam na internet e outras informações comentadas entre os povos, às quais o Conselho Indigenista Missionário – Cimi teve acesso, indicam que o governo Bolsonaro estaria incentivando alguns indígenas à realização de uma ação política, em Brasília, no próximo dia 19 de abril.
O governo de Jair Bolsonaro investe agressivamente no divisionismo entre os povos indígenas como estratégia para favorecer a imposição dos interesses financistas de grandes conglomerados empresariais e investidores, nacionais e internacionais, da mineração e do agronegócio, com vistas a:
1- Manter as terras indígenas invadidas e sendo exploradas e dilapidadas, ilegal e criminosamente, por garimpeiros, madeireiros, grileiros e latifundiários em todas as regiões do país;
2- Abrir as terras indígenas já demarcadas para a exploração mineral e agroflorestal, acabando inclusive com o direito constitucional dos povos ao usufruto exclusivo de suas terras, dando margem à legalização de um novo ciclo histórico de esbulho territorial contra os povos originários, a exemplo do ocorrido noutras épocas, inclusive recentes, do processo de colonização do Brasil;
3- Impedir, por completo e em definitivo, o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas ainda não regularizadas, de onde os povos que hoje lutam pela terra foram expulsos e mantidos violentamente afastados, muitas vezes com forças bélicas privadas e do próprio Estado brasileiro.
Em um dos áudios que circulam pela rede, uma pessoa não-indígena que diz representar uma cooperativa de garimpeiros pede apoio a colegas que operam ilegalmente dentro de terra indígena, bem como a empresários e comerciantes de Jacareacanga (PA), para financiar as despesas de viagem de alguns indígenas a Brasília. Imagens e informações da região, também confirmadas pela imprensa, indicam que dois micro-ônibus já deixaram o município do oeste paraense em direção à capital federal.
Como argumento para reforçar a importância e urgência do apoio financeiro, o suposto representante fala inclusive que o governo Bolsonaro e a Polícia Federal estariam sendo obrigados por decisão judicial a realizar operação para retirar garimpeiros invasores de terras indígenas e que, para impedir que isso seja efetivado, seria necessária e urgente a vinda de indígenas aliciados por eles para Brasília, a fim de “matar o passarinho no ninho”. Trata-se de algo extremamente grave.
Esta informação aponta para a possibilidade de que a ação em questão, prevista para o dia 19 de abril, seria realizada inclusive contra o Supremo Tribunal Federal (STF), pois foi o Supremo que determinou recentemente, no âmbito da ADPF 709, apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que o Executivo cumpra a Constituição Brasileira e retire invasores de ao menos sete Terras Indígenas (TIs): Yanomami (RR), Karipuna (RO), Uru-Eu-Wau-Wau (RO), Kayapó (PA), Trincheira Bacajá (PA), Munduruku (PA) e Araribóia (MA).
É público e notório que o presidente Bolsonaro tem recebido garimpeiros recorrentemente e também alguns indígenas “convertidos” à ideologia da prosperidade individualista no Palácio do Planalto. Em 2020, após a presença do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em Jacareacanga (PA), que interrompeu uma operação de retirada de invasores da TI Munduruku, alguns garimpeiros e indígenas foram transportados a Brasília em avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para reuniões com o governo. Há poucos dias, conforme noticiado pela imprensa, alguns indígenas teriam sido instigados pelo próprio Presidente da República a pressionar autoridades, instituições e Poderes da República a favor do agronegócio e da mineração.
O governo Bolsonaro está agindo em estreita articulação e conluio com operadores políticos dos interesses das corporações e dos investidores desses setores econômicos, que atuam também em prefeituras, câmaras municipais, algumas igrejas fundamentalistas locais de matriz cristã, entidades de classe representativa de latifundiários e no Congresso Nacional – neste caso, por meio de parlamentares federais das bancadas ruralista, da mineração e do fundamentalismo religioso cristão.
Neste contexto se inserem as informações recebidas de lideranças indígenas pelo Cimi, segundo as quais uma conhecida entidade de classe dos fazendeiros, do estado do Mato Grosso do Sul, também estaria incentivando e financiando a viagem de alguns indígenas daquele estado a Brasília nos próximos dias.
Da mesma forma, relacionam-se a este cenário os relatos de assédio e pressão sofridos por lideranças indígenas, por parte de políticos locais, para que aceitem propostas de exploração de seus territórios.
A intenção desses operadores políticos das corporações e investidores internacionais do agronegócio e da mineração, assim como do próprio governo Bolsonaro, é emplacar a narrativa de que ‘todos’ os povos indígenas do Brasil seriam favoráveis às pautas que interessam a esses poderosos grupos econômicos e políticos. Visam, ao mesmo tempo, deslegitimar publicamente a Apib, suas organizações regionais e as lideranças de povos e comunidades indígenas que lutam por seus direitos em todas as regiões do país.
Além disso, estas ações podem ter como consequência direta o fortalecimento dos grupos de garimpeiros, grileiros e madeireiros que atuam ilegalmente nas terras indígenas, acirrando ainda mais os conflitos que já vêm se intensificando de forma preocupante nos últimos meses em diversas regiões. Não há exagero em afirmar que tal endosso à atuação criminosa e ilegal dentro dos territórios indígenas pode resultar em confrontos, feridos e mortes. É um agravante o fato de que essa armação ocorra em plena pandemia, enquanto o país passa por uma grave crise sanitária e hospitalar.
Está muito evidente que estes pretendidos atos em Brasília seriam usados como uma chave, uma senha para que o governo e as bancadas parlamentares citadas, sob o argumento de supostamente respeitar a autonomia e a liberdade dos povos, dessem sequência acelerada à tramitação de proposições legislativas que lhes interessam e que agridem os direitos indígenas, a exemplo, mas não apenas, das seguintes:
1- Projeto de Lei 191/2020: de iniciativa do Governo Bolsonaro, caso aprovado, permitirá a exploração mineral e hídrica das terras indígenas;
2- Projeto de Lei 490/07: com outros 13 Projetos de Lei apensados, prevê a criação de vários mecanismos para impedir a demarcação de terras indígenas, inclusive a demarcação de terras por meio de Projeto de Lei, submetendo as demarcações ao Legislativo Federal, e a introdução da tese inconstitucional do marco temporal;
3- PEC 215/00: caso aprovada, alteraria o texto constitucional para inviabilizar novas demarcações de terras indígenas, inclusive por meio da consagração da tese do marco temporal na Constituição, e para acabar com o direito do usufruto exclusivo, permitindo assim a exploração agropecuária e florestal das terras já demarcadas;
Além da tramitação de propostas legislativas anti-indígenas, as ações orquestradas pelo governo federal serviriam, particularmente, para fomentar um clima de constrangimento político dos povos indígenas com o STF, exatamente no momento em que o Supremo tem tomado decisões que respeitam e reafirmam o direito constitucional dos povos às suas terras tradicionais, como nos casos recentes da ADPF 709, da Ação Rescisória 2686 (caso Guyraroká), das liminares que impedem despejos contra indígenas de todo o país e que suspenderam os efeitos do Parecer Antidemarcação 01/2017 da AGU, no Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, dentre outras. Estas decisões têm servido de barreira aos interesses do governo e das bancadas citadas nesta que é a última instância do Judiciário.
Mais do que isso, a intenção desses operadores políticos, ao promover o constrangimento entre indígenas e o Supremo, tem estreita relação com o fato de que o STF julgará o mérito do RE 1.017.365, com caráter de Repercussão Geral reconhecida, no âmbito do qual o Supremo terá a oportunidade de desconstruir a tese do marco temporal e reforçar o direito dos povos às suas terras.
Nesta que é a disputa fundamental para o presente e futuro dos povos, cuja decisão terá que ser aplicada necessariamente a todas as terras indígenas do Brasil, a bancada ruralista e entidades de classe que representam latifundiários, inclusive do Mato Grosso do Sul, defendem a tese do marco temporal e, agora, buscam usar alguns indígenas para constranger os ministros do Supremo a aderir a esta tese – que, sendo vitoriosa, de fato e de direito, rasgaria a Constituição de 1988 quanto ao tema.
Alertamos aos indígenas contatados e incentivados por representantes do governo, do latifúndio, do garimpo e por políticos locais a apoiar ações e projetos voltados à exploração das terras indígenas que os interesses destes grupos são totalmente antagônicos aos próprios direitos e projetos de vida e futuro dos povos originários.
Com a experiência de quem caminha rumo aos 50 anos de dedicação à causa indígena, a serem completados no dia 23 de abril de 2022, e preocupado com a gravidade desse cenário extremamente ameaçador aos povos originários e demais cidadãos brasileiros, que se assemelha em muitos aspectos ao imposto pelo projeto integracionista e etnocida da ditadura militar, o Cimi faz esse alerta urgente a todos os povos originários, suas lideranças, organizações e aliados.
O momento é de alerta total para enfrentar e derrotar as forças do genocídio. As gerações passadas dos povos originários do Brasil derrotaram o projeto da ditadura militar com muita resistência, união, articulação, organização e mobilização, num processo de luta que tem como símbolos emblemáticos as mais de 50 grandes assembleias indígenas realizadas entre os anos 1974 a 1984, a criação das organizações indígenas no início dos anos 1980 e a mobilização durante a Constituinte nos anos 1987 e 1988.
A geração presente, suas lideranças e organizações indígenas, em memória e em honra às gerações passadas, tem uma tarefa histórica e urgente de grande envergadura diante do projeto de morte do atual governo brasileiro, aliado de primeira hora dos mesmos e sempre muito violentos inimigos dos povos. Na resposta a mais esta tarefa histórica, o Cimi reitera sua solidariedade e irrestrito apoio aos povos originários do Brasil, suas lideranças e suas organizações.
Brasília, 15 de abril de 2021
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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